segunda-feira, 25 de abril de 2011

25 Hora a Hora!

Parque Livre

Gritavam um com o outro como se a vida de cada um dependesse da vontade que tinham de falar mais alto. Assistia a esta cena enquanto mastigava a minha sandes na hora do almoço. Tanto quanto pude perceber, um dos homens estacionou num lugar que o outro se preparava para tomar. A discussão decorreu mesmo havendo outros lugares livres, onde cada um poderia estacionar.
O mais exaltado (aquele que tinha ficado de fora) era um homem de ar atlético, teria uns 30 anos. Chamava-se M e trabalhava por conta própria a recibos verdes. No seu entender aquele era um abuso que não poderia permitir. Sentia-se ameaçado, desrespeitado. Não era tanto pelo lugar em si que ele discutia, mas sim pela atitude do outro. Tanto que não reclamava o lugar de volta.
Aquela manhã M tinha-a passado numa repartição da Segurança Social para regularizar a sua contribuição. Pagar o que ali lhe pediam era como quem ia arrancando cada um dos seus dentes impecáveis. Um a um. Mas não tinha escolha. Ainda por cima aquilo que ia ganhando esporadicamente mal dava para pagar um apartamento alugado nos arredores da cidade.
M era mais uma peça na engrenagem e tinha que cumprir as suas obrigações para poder ser parte de um corpo que era maior que o dele. Chegava ao fim do mês com o dinheiro contado. Isto nos melhores meses, porque muitas das vezes lá tinha que pedir ajuda aos pais.
Participava religiosamente em todos os sufrágios eleitorais. Tinha sido um hábito que o pai lhe tinha incutido, dizendo que aquele era um direito conquistado à custa do sacrifício de muita gente. M não percebia muito bem aquilo primeiro porque não teve lutar para poder votar e depois porque, daquele acto, não vislumbrava qualquer efeito relevante que melhorasse a sua vida de uma forma prática.
O sonho de M passava por continuar a estudar e especializar-se na sua área. Esse era um projecto que ia sendo adiado. Independentemente de tudo, acreditava convictamente que um dia teria estabilidade suficiente que lhe permitisse algum conforto, ter uma família. Acreditava num país mais justo e equilibrado, em que o esforço para que isso acontecesse fosse repartido por todos, sem que houvesse quem atalhasse caminho.
Aquela atitude que viu passar à sua frente no parque de estacionamento, era mais uma ameaça para tudo aquilo que lhe passava pela cabeça neste momento. Apesar de tudo poderia sempre escolher porque continuava a ter liberdade para isso. Tinha a liberdade para poder fazer com que as coisas fossem diferentes e tinha também a liberdade para esquecer todas as injustiças que, achava ele, lhe eram infligidas. Contudo e bem lá no fundo, não se sentia livre porque todas as suas decisões eram constantemente condicionadas por decisões de outros.
O homem com quem M discutia saiu do carro descomprometido. Carregou no comando do carro sem olhar para trás e fez com que as luzes amarelas do carro piscassem duas vezes. M ficou nas suas costas de braços caídos enquanto o outro se afastava. A sua vontade era começar uma revolução ali mesmo. Eu terminei a minha sandes e saí, tranquei igualmente o meu carro e voltei ao trabalho.

Paulo Dumas

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