sábado, 25 de abril de 2015

Uma homenagem a Abril... por Júlio Borges



"Chovia copiosamente lá fora. O som incessante da chuva nas vidraças das janelas, nas carroçarias dos carros, nas poças de água que se iam formando na rua lamacenta.
            Não estava habituado àquela chuva miúda que pinga, pinga, certa e precisa, sem cheias, enxurradas e inundações.
            Não, não estava. Apesar de viver há vários anos na Europa, não se habituava à falta das monções, à falta do calor exasperante, dos períodos de seca.
Não se habituava, mas suportava, porque nada disso era suficientemente importante. A chuva que teimava em continuar a cair. A viagem realizada há anos, dura, longa, repleta de privações. A distância da família; mãe, pai, mulher e filhos, que, com o tempo, haviam percorrido e sofrido as mesmas privações, a mesma dureza, feito semelhante jornada. A falta de emprego, o frio, o rigor do inverno, os olhares desconfiados, o preconceito. Tudo era suportável comparado com a sua vida passada.
            A Europa era onde a sua liberdade vivia, era a sua fuga da opressão. Vivia agora no mundo civilizado, repleto de oportunidades, sem escravatura, sem medo, sem fome, sem morte nem terror.
            Ahmir, fugira de uma democracia tirana, onde o venerável líder, eleito pelo povo, depois de escolhido pelos seus ascendentes, reinava com a sua barriga e hipotálamo. Governava com mão de ferro, com regras de proveito próprio, com leis de dimensões tacanhas, opressoras, sufocantes, claustrofóbicas da identidade individual, para promoção de uma identidade coletiva controlada e acéfala.
            Ahmir sempre desejara fugir. Fugir e viver na civilização. Ser livre.
Finalmente conseguira.
Vivia agora, anos depois da sua partida, com seus pais, idosos e sem meios de subsistência senão o trabalho do filho.
Vivia agora com sua esposa e seus filhos, trabalhando ambos, dias sem fim, horas intermináveis, por um salário sugado, chupado por todos os organismos criados para o efeito.
Trabalhavam ambos, sacrificando-se, para suprir todas as necessidades dos seus ditadores de bolso, adolescentes (des)integrados duma sociedade plural, cada vez mais xenófoba, mais distante e tão próxima. De uma sociedade plural, evoluída, tecnológica e solitária.
            Era livre. Vivia agora repleto de bens de consumo efémeros, de caducidade célere.
Finalmente alcançara a civilização e a liberdade. Tinha a vida que sempre almejara. Vivia agora feliz, reduzido a uma existência eletrónica, digital e virtual, que inconscientemente pairava sobre a sua vida, na sua vida.
Uma existência controlada nas suas compras do hipermercado, nos programas visionados, nos telefonemas efetuados, nos sítios de internet pesquisados, nos likes clicados, nos instantâneos fotografados, nas short messages digitadas, nos tweets teclados, nos estados divulgados, nos consumos elétricos efetuados, nos bens adquiridos, nos pensamentos libertados, nas palavras ao vento digitadas, nas letras enterradas num ecrã.
            Ahmir sempre quisera fugir da tirania, opressão, terror e ditadura em que vivera.
            Ahmir vivia agora livre. Podia fazer o que lhe aprouvesse, dizer o que lhe apetecesse, ir onde desejasse, comprar o que a publicidade mandasse, ler o que o capitalismo planeasse, ver o que o poder mediático exibisse, pensar o que os cifrões, de lápis azul, entendessem.
            Ahmir vivia agora livre. Tinha a sua casa, num belo bairro, de lata forrado, de alpendre lamacento. À porta, um topo de gama, velho, ferrugento, importado.
            Ahmir vivia agora livre. Porque assim é a liberdade. Desejada por todos e alcançada por muitos. Todos a temos. Segundo os padrões de um Grande Irmão, que tudo controla, tudo vê.
            Ahmir detestava aquela chuva miúda. Mas nada disso importava. Era livre para viver e escolher, as escolhas e ideias dos outros."

Um original de Júlio Borges, membro do NE25A

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