sexta-feira, 25 de abril de 2014

A Terra do Lado de Lá e a Terra do Lado de Cá... de Júlio Borges


"Zé Fagundes, rapaz singelo, alto para a idade, mas tão magro, que não ficara a dever nada à fortuna, vivia na Terra do Lado de Lá, assim chamada porque uma fronteira a separava da Terra do Lado de Cá. Nada na sua vida era aleatório. Tudo estava pensado desde a sua infância, pois assim se procedia no Lado de Lá.
L. morava na Terra do Lado de Cá. Era uma rapariga nada vaidosa, onde o cabelo sem rei nem roque, os óculos de massa grandes e pesados e um péssimo feitio antissocial tornavam-na a menos atraente da sua espécie, do Lado de Cá. Também o seu futuro tinha sido preparado com todo o cuidado. Tinha frequentado a escola e sido acompanhada durante todo o seu percurso escolar. Desde cedo tinha sido incentivada a trabalhar arduamente para alcançar os objetivos propostos. Assim se procedia do Lado de Cá.
Zé Fagundes, também foi para a escola, sendo a sua vida seguida com enorme atenção. Também ele tinha sido ensinado a reconhecer o peso e o valor do trabalho.
Quem os lesse diria que nada de estranho ou diferente sondava as suas curtas e simples vidas.
Certo dia, ambos sentados nas margens desta fronteira que os separava, foram despertados um para o outro. Os seus corações explodiram num fogo-de-artifício de sinapses e estímulos elétricos que dariam para iluminar uma pequena cidade. Ambos sabiam do que se tratava, o amor encontrara-os, e ambos tinham encontrado o amor.
Como convinha, e seguindo as tradições, inicialmente, aquela fronteira não foi impedimento, pois de uma ou outra forma, acompanhavam-se lado a lado. Ainda que separados fisicamente as suas mentes, as suas almas tocavam-se. Mas, com o tempo tudo se perde, e até esse fulgor, emoção, alegria foi exigindo mais, e mais, e mais, até ser impossível suportar aquela distância, tão curta e tão vasta simultaneamente.
Não faltaria muito, digo eu que sou espetador e narrador desta estória de vida, Zé Fagundes seria obrigado a seguir o seu plano de vida. Assim como L. a qual se viu obrigada a seguir um plano, um futuro. E eis que aqui, os seus caminhos se separam. Zé Fagundes ingressou numa profissão onde nada do que queria tinha lugar. Nada do que sonhara estava ao seu alcance. Na Terra do Lado de Cá, tudo era diferente. Tudo, apesar de organizado, tinha um objetivo a sua felicidade, real ou virtual.
Zé Fagundes e L. choraram na despedida, abraçaram-se com o olhar, tocaram mutuamente nas suas almas despedaçadas e partiram em direções opostas, ele para o Lado de Lá e ela para o Lado de Cá.
Mas como é próprio dos apaixonados, da juventude e dos injustiçados, Zé Fagundes rapaz singelo, que nada ficara a dever à fortuna, enraivece-se da sua sorte, do fado de todos os que do Lado de Lá têm a sua vida traçada, definida seguida por mil olhos que nunca dormem, que nunca descansam, e irrompe contra a fronteira, contra os que o seguem e limitam desde o berço, contra aqueles que tudo veem e perscrutam.
Coberto de suor e lágrimas, de amor e ódio, Zé Fagundes, irrompe, lutando contra a sua sorte, ou falta dela. Carrega e luta contra o seu destino, contra o emprego que lhe era destinado, Zé Fagundes irrompe e luta, contra seus pais, contra os vizinhos e as gerações que antes deles permitiram que o Lado de Lá, permanece-se imutável, constante na sua opressão, na sua vigilância.
De braços abertos L. aguarda-o, esperançosa, ofegante, mas também ela passiva.
Zé Fagundes, luta até ao seu extremo, luta até cair inerte na sua vitalidade. Zé Fagundes perece nesta batalha. L., como acontece muitas vezes aos que vivem do Lado de Cá, vira costas e segue o seu caminho, dilacerada no seu íntimo, despedaça nos seus sentimentos, no seu coração, e segue em sofrimento.
Esperem talvez a morte de Zé Fagundes não tenha sido em vão. Outros viram o esforço, o sacrifício de Zé Fagundes. L. ao contrário do que parece também luta pelo seu amado e sacrifício deste, não é preciso carregar contra a fronteira porque na Terra do Lado de Cá, as liberdades e direitos são salvaguardados. L. de seu nome Liberdade também luta pelos do Lado de Lá, como Zé Fagundes por ela lutou.

Não conseguirão romper esta fronteira em um impulso, mas lutarão para a quebrar, até que aqueles que seguem, que vigiam, sintam que Zé Fagundes ali está. Que Zé Fagundes permanece na sua luta, e pelo seu amor continua a carregar contra o ódio, a opressão, a DITADURA."
Júlio Borges

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