"Zé
Fagundes, rapaz singelo, alto para a idade, mas tão magro, que não ficara a
dever nada à fortuna, vivia na Terra do Lado de Lá, assim
chamada porque uma fronteira a separava da Terra do Lado de Cá. Nada na sua
vida era aleatório. Tudo estava pensado desde a sua infância, pois assim se
procedia no Lado de Lá.
L.
morava na Terra do Lado de Cá. Era uma rapariga nada vaidosa, onde o cabelo sem
rei nem roque, os óculos de massa grandes e pesados e um péssimo feitio
antissocial tornavam-na a menos atraente da sua espécie, do Lado de Cá. Também o
seu futuro tinha sido preparado com todo o cuidado. Tinha frequentado a escola
e sido acompanhada durante todo o seu percurso escolar. Desde cedo tinha sido
incentivada a trabalhar arduamente para alcançar os objetivos propostos. Assim
se procedia do Lado de Cá.
Zé
Fagundes, também foi para a escola, sendo a sua vida seguida com enorme
atenção. Também ele tinha sido ensinado a reconhecer o peso e o valor do
trabalho.
Quem
os lesse diria que nada de estranho ou diferente sondava as suas curtas e
simples vidas.
Certo
dia, ambos sentados nas margens desta fronteira que os separava, foram
despertados um para o outro. Os seus corações explodiram num fogo-de-artifício
de sinapses e estímulos elétricos que dariam para iluminar uma pequena cidade.
Ambos sabiam do que se tratava, o amor encontrara-os, e ambos tinham encontrado
o amor.
Como
convinha, e seguindo as tradições, inicialmente, aquela fronteira não foi
impedimento, pois de uma ou outra forma, acompanhavam-se lado a lado. Ainda que
separados fisicamente as suas mentes, as suas almas tocavam-se. Mas, com o
tempo tudo se perde, e até esse fulgor, emoção, alegria foi exigindo mais, e
mais, e mais, até ser impossível suportar aquela distância, tão curta e tão
vasta simultaneamente.
Não
faltaria muito, digo eu que sou espetador e narrador desta estória de vida, Zé
Fagundes seria obrigado a seguir o seu plano de vida. Assim como L. a qual se
viu obrigada a seguir um plano, um futuro. E eis que aqui, os seus caminhos se
separam. Zé Fagundes ingressou numa profissão onde nada do que queria tinha
lugar. Nada do que sonhara estava ao seu alcance. Na Terra do Lado de Cá, tudo
era diferente. Tudo, apesar de organizado, tinha um objetivo a sua felicidade,
real ou virtual.
Zé
Fagundes e L. choraram na despedida, abraçaram-se com o olhar, tocaram
mutuamente nas suas almas despedaçadas e partiram em direções opostas, ele para
o Lado de Lá e ela para o Lado de Cá.
Mas
como é próprio dos apaixonados, da juventude e dos injustiçados, Zé Fagundes
rapaz singelo, que nada ficara a dever à fortuna, enraivece-se da sua sorte, do
fado de todos os que do Lado de Lá têm a sua vida traçada, definida seguida por
mil olhos que nunca dormem, que nunca descansam, e irrompe contra a fronteira,
contra os que o seguem e limitam desde o berço, contra aqueles que tudo veem e
perscrutam.
Coberto
de suor e lágrimas, de amor e ódio, Zé Fagundes, irrompe, lutando contra a sua
sorte, ou falta dela. Carrega e luta contra o seu destino, contra o emprego que
lhe era destinado, Zé Fagundes irrompe e luta, contra seus pais, contra os
vizinhos e as gerações que antes deles permitiram que o Lado de Lá,
permanece-se imutável, constante na sua opressão, na sua vigilância.
De
braços abertos L. aguarda-o, esperançosa, ofegante, mas também ela passiva.
Zé
Fagundes, luta até ao seu extremo, luta até cair inerte na sua vitalidade. Zé
Fagundes perece nesta batalha. L., como acontece muitas vezes aos que vivem do Lado
de Cá, vira costas e segue o seu caminho, dilacerada no seu íntimo, despedaça
nos seus sentimentos, no seu coração, e segue em sofrimento.
Esperem
talvez a morte de Zé Fagundes não tenha sido em vão. Outros viram o esforço, o
sacrifício de Zé Fagundes. L. ao contrário do que parece também luta pelo seu
amado e sacrifício deste, não é preciso carregar contra a fronteira porque na
Terra do Lado de Cá, as liberdades e direitos são salvaguardados. L. de seu
nome Liberdade também luta pelos do Lado de Lá, como Zé Fagundes por ela lutou.
Não
conseguirão romper esta fronteira em um impulso, mas lutarão para a quebrar,
até que aqueles que seguem, que vigiam, sintam que Zé Fagundes ali está. Que Zé
Fagundes permanece na sua luta, e pelo seu amor continua a carregar contra o
ódio, a opressão, a DITADURA."
Júlio Borges
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