Sendo o Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma das grandes conquistas da revolução de Abril, publicamos hoje a opinião de Correia de Campos, sobre este serviço, na altura em que se comemora o 35.º aniversário da sua criação. Brevemente procederemos à publicação de opiniões contrárias ás deste autor.
"De forma larvar começam a
aparecer na Saúde as consequências do ajuste orçamental violento a que estamos
submetidos desde há três anos e meio. Ainda sem resultados visíveis nos grandes
agregados das estatísticas de mortalidade. Nem sequer nas de morbilidade ou de
doença, essas mais difíceis de colher. Mas no desempenho dos serviços, ou seja,
no funcionamento do SNS, que o Governo proclama defender até à eternidade.
Os mais fundamentalistas
adiantam ter sido este Governo a salvá-lo da sua falência, dita técnica. Já
conhecíamos o argumento desde os anos oitenta, quando Mrs.Thatcher, soltou o
famoso brado “o SNS não está em risco, está a salvo, connosco” (the NHS is safe
with us). Depois, foi o que se viu.
Sempre morreram pessoas nas
urgências, antes, depois e durante a assistência. Por tal razão me bati para
separar verdadeiros serviços de urgência de meras salas onde médico, enfermeira
e administrativo faziam de contas que garantiam um atendimento de qualidade
impossível. O primeiro requisito são recursos humanos de assistência directa,
sobretudo médicos e enfermeiros. Quando estes escasseiam ou são comprimidos, ou
mesmo suprimidos, a deriva de qualidade torna-se perigosa. Em situações de
maior procura, normalmente no inverno e no pico do verão, por ausência de
alternativa, muitos doentes frágeis afluem onde pensam poder ser rapidamente
assistidos. O resultado traduz-se em esperas inomináveis, mesmo depois de uma
triagem perfeita que separe a procura por graus de risco.
Segundo noticiam os
jornais, sem contradita do ministério, teriam ocorrido mortes após várias horas
de espera para observação e tratamento, em São José, no Hospital de Setúbal, no
de Santa Maria da Feira e no de Peniche. Locais onde sempre houve boas
condições de assistência urgente integral (com a eventual excepção de Peniche,
por razões que ocuparam os jornais nos finais de 2007). O que terá feito a
diferença, agora? Que factor causal pode ter influenciado estes desfechos?
Quando os familiares referem a não assistência, não é suposto conhecerem as
escalas de médicos e enfermeiros. Mas quando, em algumas grandes urgências,
apenas teria sido possível escalar 5 ou 6 médicos, aí a preocupação aumenta.
Passou-se do “oitenta para o oito”. Bem recordo o abuso de nomeações de escalas
nos maiores hospitais do País, colocando entre 90 e 105 médicos, em serviço de
urgência de porta e interna. Razões remuneratórias e não clínicas. Vencimentos
baixos para a qualidade da função, os gestores abriam o recurso a horas extra
na urgência para compensar e manter motivado o profissional. Claro que entre a
motivação eficiente e o abuso do laxismo a fronteira seria sempre difícil. Tudo
isso custava muito dinheiro ao País. Com a Troika vieram medidas austeritárias,
mas não reformadoras. Em vez de se reorganizar o trabalho e a retribuição de
médicos e enfermeiros em termos decentes, para o que havia espaço político, o
Governo preferiu um quick winner: cortar nas escalas, reduzir vencimentos e
limitar o valor a pagar por horas extra. Em vez de se interessarem pelas
urgências, os profissionais passaram a delas fugir. A solução fácil, mais uma
vez, foi recrutar médicos sem ligação ao hospital, de empresas constituídas
para fornecer esta mão-de-obra qualificada. Como os encargos rapidamente
espiralavam, o ministério anterior fixou um tecto financeiro para pagar a tais
profissionais. Chegada a crise, sem outro recurso que as leis do mercado
protegido que criou, não restou ao Estado outra solução que não fosse entrar no
jogo escatológico de subir o tecto. Lá se foi, de vez, a aprendizagem das
urgências para médicos da casa, as reuniões de equipa para encaminhamento de
casos no final do turno e o acompanhamento personalizado, intra-muros, por quem
havia assistido em primeira mão.
Entrámos, assim, em círculo vicioso:
não podem deixar de ser contratados médicos ao exterior para acolher uma
procura exigente e crescente, agravada por razões sazonais. Não se pode deter
essa procura, a montante, por se ter parado na criação de unidades de saúde
familiares (USF) e de cuidados continuados (CCI), devido a escassez de recursos
para pequenas obras, equipamento e co-financiamentos a instituições promotoras.
Qualquer dessas alternativas é mais eficiente no curto e no médio prazo que a
porta aberta a tudo e a todos, apesar dos 20 euros de taxa moderadora cobrada,
até judicialmente, aos não isentos, com rendimento superior a 628 euros. Não
admira que uns e outros, doentes e pessoal, fujam para o privado. Os doentes,
que a si se considerem sem gravidade, preferem gastar os 20 euros no conforto
da consulta rápida de um hospital privado, onde provavelmente serão assistidos
por um médico de família que bem gostaria de integrar uma USF, mas não o pode
fazer por o crescimento destas estar em hibernação. Médicos com mais de 55 anos
preferem aguardar a reforma, ao desconforto de uma noite agitada num grande
hospital. Os mais novos são atraídos por hospitais privados, onde já existem
equipas de qualidade, reuniões clínicas e sobretudo retribuição decente. Os
enfermeiros emigrarão para a Bélgica ou para o Reino Unido, onde a sua
excelente formação é devidamente recompensada. Neste jogo de desencontros todos
perdemos, sobretudo os que não têm os 20 euros. Assim se comemora o 35º
aniversário do SNS."
Fonte: Jornal "Publico"
0 comentários:
Enviar um comentário