terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A opinião ... "35 anos do SNS"

Sendo o Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma das grandes conquistas da revolução de Abril, publicamos hoje a opinião de Correia de Campos, sobre este serviço, na altura em que se comemora o 35.º aniversário da sua criação. Brevemente procederemos à publicação de opiniões contrárias ás deste autor.

"De forma larvar começam a aparecer na Saúde as consequências do ajuste orçamental violento a que estamos submetidos desde há três anos e meio. Ainda sem resultados visíveis nos grandes agregados das estatísticas de mortalidade. Nem sequer nas de morbilidade ou de doença, essas mais difíceis de colher. Mas no desempenho dos serviços, ou seja, no funcionamento do SNS, que o Governo proclama defender até à eternidade.
Os mais fundamentalistas adiantam ter sido este Governo a salvá-lo da sua falência, dita técnica. Já conhecíamos o argumento desde os anos oitenta, quando Mrs.Thatcher, soltou o famoso brado “o SNS não está em risco, está a salvo, connosco” (the NHS is safe with us). Depois, foi o que se viu.
Sempre morreram pessoas nas urgências, antes, depois e durante a assistência. Por tal razão me bati para separar verdadeiros serviços de urgência de meras salas onde médico, enfermeira e administrativo faziam de contas que garantiam um atendimento de qualidade impossível. O primeiro requisito são recursos humanos de assistência directa, sobretudo médicos e enfermeiros. Quando estes escasseiam ou são comprimidos, ou mesmo suprimidos, a deriva de qualidade torna-se perigosa. Em situações de maior procura, normalmente no inverno e no pico do verão, por ausência de alternativa, muitos doentes frágeis afluem onde pensam poder ser rapidamente assistidos. O resultado traduz-se em esperas inomináveis, mesmo depois de uma triagem perfeita que separe a procura por graus de risco.
Segundo noticiam os jornais, sem contradita do ministério, teriam ocorrido mortes após várias horas de espera para observação e tratamento, em São José, no Hospital de Setúbal, no de Santa Maria da Feira e no de Peniche. Locais onde sempre houve boas condições de assistência urgente integral (com a eventual excepção de Peniche, por razões que ocuparam os jornais nos finais de 2007). O que terá feito a diferença, agora? Que factor causal pode ter influenciado estes desfechos? Quando os familiares referem a não assistência, não é suposto conhecerem as escalas de médicos e enfermeiros. Mas quando, em algumas grandes urgências, apenas teria sido possível escalar 5 ou 6 médicos, aí a preocupação aumenta. Passou-se do “oitenta para o oito”. Bem recordo o abuso de nomeações de escalas nos maiores hospitais do País, colocando entre 90 e 105 médicos, em serviço de urgência de porta e interna. Razões remuneratórias e não clínicas. Vencimentos baixos para a qualidade da função, os gestores abriam o recurso a horas extra na urgência para compensar e manter motivado o profissional. Claro que entre a motivação eficiente e o abuso do laxismo a fronteira seria sempre difícil. Tudo isso custava muito dinheiro ao País. Com a Troika vieram medidas austeritárias, mas não reformadoras. Em vez de se reorganizar o trabalho e a retribuição de médicos e enfermeiros em termos decentes, para o que havia espaço político, o Governo preferiu um quick winner: cortar nas escalas, reduzir vencimentos e limitar o valor a pagar por horas extra. Em vez de se interessarem pelas urgências, os profissionais passaram a delas fugir. A solução fácil, mais uma vez, foi recrutar médicos sem ligação ao hospital, de empresas constituídas para fornecer esta mão-de-obra qualificada. Como os encargos rapidamente espiralavam, o ministério anterior fixou um tecto financeiro para pagar a tais profissionais. Chegada a crise, sem outro recurso que as leis do mercado protegido que criou, não restou ao Estado outra solução que não fosse entrar no jogo escatológico de subir o tecto. Lá se foi, de vez, a aprendizagem das urgências para médicos da casa, as reuniões de equipa para encaminhamento de casos no final do turno e o acompanhamento personalizado, intra-muros, por quem havia assistido em primeira mão.
Entrámos, assim, em círculo vicioso: não podem deixar de ser contratados médicos ao exterior para acolher uma procura exigente e crescente, agravada por razões sazonais. Não se pode deter essa procura, a montante, por se ter parado na criação de unidades de saúde familiares (USF) e de cuidados continuados (CCI), devido a escassez de recursos para pequenas obras, equipamento e co-financiamentos a instituições promotoras. Qualquer dessas alternativas é mais eficiente no curto e no médio prazo que a porta aberta a tudo e a todos, apesar dos 20 euros de taxa moderadora cobrada, até judicialmente, aos não isentos, com rendimento superior a 628 euros. Não admira que uns e outros, doentes e pessoal, fujam para o privado. Os doentes, que a si se considerem sem gravidade, preferem gastar os 20 euros no conforto da consulta rápida de um hospital privado, onde provavelmente serão assistidos por um médico de família que bem gostaria de integrar uma USF, mas não o pode fazer por o crescimento destas estar em hibernação. Médicos com mais de 55 anos preferem aguardar a reforma, ao desconforto de uma noite agitada num grande hospital. Os mais novos são atraídos por hospitais privados, onde já existem equipas de qualidade, reuniões clínicas e sobretudo retribuição decente. Os enfermeiros emigrarão para a Bélgica ou para o Reino Unido, onde a sua excelente formação é devidamente recompensada. Neste jogo de desencontros todos perdemos, sobretudo os que não têm os 20 euros. Assim se comemora o 35º aniversário do SNS."

Fonte: Jornal "Publico"

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