quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Conto de Natal... um original de Julio Borges

"Martin, advogado conceituado, mas caído em desgraça após se ter despedido da firma, Antoinne e Griller, saíra de casa para a missa do galo. Não era católico, pelo menos achava que não.Tudo na sua vida rodava à sua volta. A sua arrogância e ambição não lhe concediam qualquer tempo para se lamentar, arrepender-se ou pensar no próximo.
A missa do galo servia apenas para zelar pelos seus interesses. Na catedral, era ponto de encontro da alta sociedade, e sempre bom local para contactos com possíveis futuros clientes.
Pelo caminho até ao metro foi abalroado por um miúdo, sujo, esfarrapado, com aspeto miserável.
- Pardon, meu senhor. - Disse o rapaz.
- Vê por onde andas! Para a próxima tem mais cuidado. –Reprendeu-o Martin. Não sabia porquê, mas instintivamente levou a mão ao sobretudo de caxemira, comprado num dos melhores alfaiates da capital.
- Maldito, roubou-me o telemóvel! - Grita chocado e cheio de raiva. O telemóvel era a sua agenda, onde tinha todos os seus contactos.
Martin, corre atrás do rapaz. Persegue-o até uma zona da cidade que não conhecia, apesar de não distar mais de algumas centenas de metros do seu confortável loft na RueCassette. Era a primeira vez que entrava naquele parque, no Jardin de Luxembourg.
Rogou pragas àquele miúdo, à sua sorte, à sua decisão de dispensar Michele, a sua motorista, com a qual toda e qualquer intimidadeseria impossível devido ao seu estatuto social.
Nunca gostara do Natal, nunca abdicara das suas regalias para os outros poderem desfrutar desta época, e na primeira vez que o fizera, tinha sido roubado. Embrenhado nos seus pensamentos, nos queixumes de um privilegiado, de repente estaca. A imagem com que se deparou contrastava com o cenário luminoso, organizado, financeiramente confortável, a que estava habituado. A medo, Martin avança.
Amontoados, vários excluídos tentavam aquecer-se junto a bidões fumegantes. Junto deles, alguns jovens, outsiders por vontade própria; dependentes, rapazes e meninas tristes, que apagam as suas mágoas na dose seguinte, precisando de se vender para as compras diárias; e grupos de voluntários celebravam a quadra natalícia, como se os seus problemas se resolvessem com uma sanduiche, uma fatia de bolo e um chocolate quente.
Ali, ele é que se sentia excluído. Todos conversavam animadamente, apesar de muitos deles não parecerem ter forças para se sustentar de pé.
Assombrado pelos preconceitos da sociedade visceral a que pertence, onde as aparências são um cartão-de-visita ou de livre-trânsito, Martin vai observando toda aquela gente indiferente à sua presença, ao seu belo e confortável casaco de caxemira, comprado no melhor alfaiate da capital, indiferentes ao seu estatuto de célebre advogado.
O rapaz, antes, o ladrão, encontrava-se encostado a um canto, junto a uma barraca improvisada com algumas tábuas e um plástico velho e rasgado. Na sua mão, o telemóvel roubado, é utilizado para iluminar algo ou alguém.
- Estás aí sem grande ladrão, tu vais ver o que te espera. – Grita Martin.
O homem, saudável em todo o seu ser, de corpo tonificado pelo ginásio, dietas e mais uma ou outra coisa ingerida, pois a sociedade exige que assim seja, alcança o rapazito e começa a bater-lhe com toda a sua força e raiva. Pela ousadia de o roubar, por o obrigar a correr no seu belo casaco de caxemira, no seu fantástico fato Armani, por o obrigar a confrontar-se com aquela miserável imagem, que nada tinha a ver com o seu mundo, que nada tinha a ver consigo. O rapaz não teria mais de sete ou oito anos. Martin abranda na sua ira, e após desferir quatro ou cinco murros naquela indefesa criança e se prepara para apanhar o telemóvel do chão, o célebre advogado, com um belo e confortável casaco de caxemira, comprado no melhor alfaiate de Paris, vê uma mulher, indigente, macérrima, abandonada, esquecida pela vida, a qual amamenta um bebé, recém-nascido.
O bebé era tão fresco neste mundo, que o cordão umbilical ainda se encontrava dependurado na sua pequena e ensanguentada barriguita. O telemóvel não iluminava nada nem ninguém. O telemóvel roubado servia para distrair a criança, uma música que Martin reconheceu como “Ave Maria” de Shubert, o seu toque selecionado, embalavam o rebento. 
            Martin, olha em seu redor, todos o olhavam com desprezo e indignação. A ele, tão célebre, tão importante na sua própria vaidade, centro da atenção de indigentes, vadios, drogados, prostitutos e prostitutas. Ele tão magnânimo, tão senhor da sua própria posição na sociedade, ser repreendido com o olhar por vagabundos!
E eis que, Martin Dubois, célebre advogado, com um belo e confortável casaco de caxemira, comprado no melhor alfaiate de Paris, se ajoelha e chora. Chora pela sua insignificância, pela sua ignorância, pelo desprezo e vergonha que sente de si próprio.
De um pulo, levanta-se, abraça aquela criança, e chora, chora, até libertar todas as suas mágoas e frustrações. De seguida chama uma ambulância levando o recém-nascido e sua mãe para o hospital. E pela primeira vez desde que se recorda de ser gente, Martin pensa nos outros.
Enquanto mãe e filhos recuperam das noites frias, dos dias em jejum, dos socos recebidos de outros tantos Martin que em Paris se cruzaram com eles, o célebre advogado, com um belo e confortável casaco de caxemira, comprado no melhor alfaiate de Paris, compra brinquedos e bugigangas, roupas e roupinhas, deixando-as nos respetivos quartos enquanto os seus ocupantes dormem.
Quanto ao célebre advogado, entra no metro, dirigindo-se à Esplanade de La Défense. Toca à campainha das águas furtadas. Espera alguns segundos, ouvindo-se uma voz à janela:
- Oui, bonjour, quem é?

- Michele, abre sou o Martin. Feliz Natal."

Júlio Borges

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